Esta é a capa do Dicionário Erico Verissimo 100 Anos – O Tempo e o Vento a Passar. O livro foi produzido pela Cia. Zaffari em janeiro de 2005, com participação da Agência Matriz, Mecenas Editora e Projetos Culturais, Tab Marketing Editorial e Opus Promoções.
Foi o segundo de uma série anual de Dicionários com grandes nomes da literatura mundial: Erico Verissimo, William Shakespeare, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Mario Quintana, Gabriel García Márquez, João Guimarães Rosa, entre outros, sendo que os sete citados tiveram a revisão da Pós-Texto, à época.
Na foto à direita, a página com emendas de revisão é de uma prova do citado Dicionário revisada pela Pós-Texto em 2005 (prova, como se sabe, é uma impressão parcial de um só exemplar de uma publicação, para a última revisão antes de ela ser impressa integralmente; na prova, corrigem-se detalhes que estejam incorretos em termos de Português ou de design, etc. – no caso, foi questão de texto).
A foto mostra as emendas assinaladas na prova do Dicionário, numa das páginas de abertura de capítulo, em que se transcreveu um trecho do livro “Solo de Clarineta” (visto aqui ao lado), de Erico Verissimo, editora Globo, edição de 1975, a primeira publicada. Tal trecho foi copiado dessa edição original para compor a página de abertura de um dos capítulos do Dicionário produzido em 2005.
Como se vê nesta outra foto com seis linhas em destaque, na edição original do livro de Erico, de 1975, já havia esses 4 erros (que permaneceram nas edições posteriores, por alguma razão – indevida, mas, enfim, alguma razão).
E como já se viu na segunda foto, na prova do “Dicionário Erico Verissimo” foram pedidas as 4 alterações no texto, em relação ao que havia naquele trecho na obra original que serviu de fonte para a abertura de um capítulo no Dicionário.
E se você leu rapidamente, ou meio por cima, talvez num primeiro momento esteja em leve dúvida ou até discorde das emendas ali marcadas na prova. É possível e normal, pois a construção da frase pode mesmo induzir a diferentes percepções. Mas para quem prestou mais atenção, as correções anotadas devem ter parecido corretas – e foram mesmo, salvo melhor juízo.
E então vem uma pergunta: por que razão, naquela edição de 1975 do livro “Solo de Clarineta”, a primeira, o trecho foi publicado com esse erro? Na verdade, um questão de concordância que gerou aqueles 4 erros na sequência.
(Aliás, eles ficarão ali assim para sempre, em milhares de exemplares já em estantes de leitores, e têm ficado assim em edições posteriores já feitas… talvez porque os novos editores tenham optado por uma discutível e eventual “fidelidade ao original”, se é que no original assim estava… ou talvez porque mesmo em novas leituras e revisões o detalhe tenha passado despercebido e, então, o erro tenha se perpetuado. Creio bem mais na segunda hipótese.)
Mas, retomando, por que o trecho tem sido publicado com o mesmo erro em tantas edições posteriores?
Alguém poderá pensar que Erico Verissimo escreveu dessa forma e mesmo tendo relido e revisto não notou o “problema”; outra pessoa talvez diga que foi intencional, uma pequena liberdade linguístico-literária movida pelo som da frase (o que não se justificaria e não parece ter sido o caso).
Também haverá quem sugira que o erro não estava ali na origem, quando foi escrito – as mãos de Erico –, e foi gerado por um editor ou na revisão, com a construção não tão simples da frase induzindo alguém a uma alteração que, na verdade, era indevida. Hipótese bem possível.
Então, se foi o próprio Erico que cometeu o deslize, como explicar que um escritor tão meticuloso, como ele sabidamente era, não tenho notado isso, em algum momento da elaboração e da releitura do texto?
E se foi um revisor ou editor que alterou equivocadamente o trecho, que estaria certo na origem, e assim criou o equívoco, como entender que o revisor ou o editor fez isso e não atinou sobre seu engano numa segunda leitura da mudança que estava fazendo? É um procedimento básico quando se altera algo numa revisão: reler o que se alterou, para ver se ficou certo, se não se está colocando um erro onde antes já estava tudo certo.
Em qualquer das hipóteses acima, é fácil entender a causa para o citado erro ter ocorrido e ainda estar presente hoje, bastando relembrar que dizer ou escrever é ato simples e complicado, ao mesmo tempo – e bem mais complicado que simples, por todas as amplas questões envolvidas quando se trata de comunicação, no caso, a escrita.
E revisar é, semelhantemente a escrever, um trabalho simples e complicado, pois o universo presente é isso mesmo, um universo, um mundo de “coisas” linguísticas presentes e interligadas em diversos aspectos e níveis, entre outras segmentações possíveis, e tudo ao mesmo tempo mas não necessariamente tudo próximo, havendo sempre ligações meio distantes umas das outras – como no tal trecho.
Provavelmente nunca saberemos quem se descuidou naquele trecho da obra de Erico Verissimo. Buscar os originais para descobrir isso talvez pudesse eximir Erico da “culpa”, se nesses originais estivesse certa a construção no trecho. A busca também poderia mostrar que foi dele mesmo o deslize inicial, que teria permanecido ali por falta de percepção de outras e diversas pessoas, entre as quais, supõe-se, um revisor – ou vários.
Ou os originais provariam que foi consciente aquela forma de escrever, quem sabe, por conterem algo como uma anotação do próprio autor alertando sobre a intenção – mas não há lógica maior nisso, penso.
Enfim, a procura aqui não é por quem acertou e por quem se equivocou e em que momento isso se deu. O que vale é apontar para o quanto pode ser complicada a comunicação, no caso, a escrita, nas letras e palavras e frases e orações que elaboramos.
O trecho em questão ficou como ficou ali (errado, e não há forma suave de dizer isso…) devido, em grande parte, à sonoridade de plural presente em… “que as religiões davam para esses fenômenos formidáveis”, sonoridade que induz a que se escreva… “eram tão simples, tão vagas ou pueris…” – e por isso fez-se a luz do erro, até hoje não apagada nas posteriores edições da obra. Essa é a explicação, e, aliás, “explicação” é a palavra-chave singular naquelas linhas (para quem, por acaso, não tenha ainda decifrado este talvez nem tão simples case linguístico).
Mas claro que tudo isso… é apenas um erro de Português num livro. Pode acontecer, embora não devesse. Toda essa explanação tem o objetivo de simplesmente demonstrar, para quem ainda não atinou, que, realmente, escrever e revisar são atos bem mais complexos do que imaginam as pessoas. Revisar talvez seja ainda mais complexo, em certos aspectos, porque ao revisar não se pode errar – ou não se deveria errar.
Olhando as duas fotos com os textos diferentes na concordância, frases, orações e sons, a mão do escritor, tudo ali diz, quem sabe, o mesmo e na essência se harmoniza, talvez.
E sentimos e entendemos o que Erico quis dizer, como em outras obras suas – mas em cada uma dessas obras pode haver latente uma ou outra nuance de linguagem desencontrada como a que aqui se viu, num outro contexto, com outras causas e implicações, certamente. Nuance à espera de um eventual leitor que a encontre e aponte, com índole literária positiva, o ocasional tom desafinado da palavra na partitura do papel.
Em solo de clarineta e em solo de letras, nossos preciosos amigos escritores inevitavelmente nos oferecem, além de bons livros e obras-primas, também esses inesperados falsetes das palavras, harmoniosamente desafinadas e perdidas no tempo.
Tomara que Erico Verissimo, olhando os lírios no campo em um lugar ao sol e com música ao longe, tenha apreciado esse leve retoque em seu retrato, retoque que depois de tantos anos o tempo e o vento trouxeram ao seu continente literário, pondo o escritor diante do espelho.
O resto é silêncio, pela compreensível e, aí sim, meio inofensiva perda de um “eu” no caminho de 40 anos entre um livro e outro, entre o trecho original e o trecho publicado na página de abertura de um capítulo do Dicionário. Encontre você também esse “eu” perdido.